terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Vida “Verglas”


Já vi muitas neves em Paris, mas nunca testemunhei como neste inverno dias seguidos desta penugem branca que caia do céu. A quantidade foi realmente enorme e todos que me conhecem perguntavam se eu tinha conseguido correr ou iria ter coragem para isto. A questão me era sempre colocada com uma expressão que denunciava o pensamento: “Manoel não conseguiu correr. Manoel não vai correr...”.
Realmente para aquele que nasceu e cresceu em Copacabana e que com seis meses foi colocado nas águas salgadas do Atlântico Sul, parece um pouco excessivo realizar o jogguing sobre este manto de gelo.
O verglas (palavra derivada de vidro que derrapa) era presente em todos os lugares e os tombos e as lesões se fazem frequentes nestas condições, mas para tudo na vida há que se ter um desejo e através dele a aproximação e o encontro de uma técnica para realizar o que se quer. Observei que até nos países mais frios e com alto índice de neve havia os seus corredores de rua. Lembro-me que em Helsinki, uma das capitais da Europa mais atoladas de neve que vi na minha vida, tinha seus corredores e assim decidi que iria encontrar por mim mesmo o modo de pisar, a correta posição do corpo para que a derrapagem fosse evitada. Assim fui e nesta maneira atenta mantenho em qualquer temperatura e condição a minha uma hora diária desta atividade tão presente em minha vida.
Outro dia durante a minha corrida polar, vi uma senhora no chão que me olhou e com os olhos meio desamparados e me disse: “Monsieur... Monsieur, por favor, me ajude a levantar. Acho que quebrei o meu pulso”. Enquanto a ajudava, pensei que aquele tombo tinha ocorrido pela falta de prudência. Caiu porque não fez atenção. Xingou a neve com a francesa indignação e com isto não se responsabilizou.
Pensei ali que a neve era um momento de crescimento, de vitória para cada um que deveria enfrenta-la para realizar o seu dia. O volume de neve era tanto que os carros estacionados estavam cobertos e assim parecia um quadro do século 19 e na mesma cena a senhora esparramada no chão vencida, sem condições psicológicas para usufruir. Olhei o sapato: uma bota de couro com o solado liso que a fazia pronta para esquiar como um trenó. Preparou-se para o tombo. Foi vencida pela falta de um correto preparo.
Não é assim que nos tornamos vencidos?
Sem se habilitar para o que se vai passar uma pessoa cai... Sem se habilitar, as situações da vida se tornam um verdadeiro verglas. O tombo daquela senhora em nada estava ligado à idade como muitos poderiam afirmar. O Tombo veio pela displicência em relação ao que o contexto daquele momento exigia.
Cada situação exige de nós algo.
No domingo auge desta realidade parisiense polar fui mostrar a rue Mouffetard, uma das mais antigas de Paris, e lá sentamos no café La Contrescarpe que é decorado com livros e uma iluminação muito agradável. Pedi ao filho de uma amiga para pegar aleatoriamente um livro da estante que estava atrás dele. Saiu “La Maison des Autres” de Bernard Clavel. Abri como se tivesse com um livro da sorte e na página estava um pensamento assinado por Alain: “Um ser que nada aprende é uma grande criança”. O que é uma criança? Um ser repleto de possibilidades, mas que por falta de experiência precisa do outro incondicionalmente. Um ser que precisa aprender para se preservar e viver sem se machucar.
Fui ver com calma a exposição das grandes caricaturas do século 20 que estão expostas nas grades dos muros do Jardim do Luxemburgo. Uma delas me chamou atenção pela proximidade com o tema desta crônica.
Esta charge que fotografei, nos fala que para uma civilização se desenvolva implica que cada adulto tem que reconhecer a necessidade contínua de aprender a lidar com os elementos que fazem parte da vida, numa posição de aprendizagem disponível e curiosa com o de uma criança. 
Pensei no momento que tirei esta foto na tempestade de neve que caiu, pensei nos passeios sobre a neve, pensei no manto branco... Pensei que qualquer amor que cai do céu, se o vivermos de olhos fechados iremos derrapar... Pensei também que qualquer coisa pode ser um verglas que tem potencial para machucar aqueles que não sabem caminhar sobre suas realidades...
Pensei que quem não se habilita a viver com conhecimentos... Mesmo nos mantos de paz... derrapa e se machuca.  

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Fazer a Vida


O ano começou e nele estaremos durante 12 meses. Em apenas um de seus 365 dias podemos inaugurar um começo, uma retomada, pois uma existência inteira pode ser condensada e, portanto representada em um dia: mil vidas; mil mortes; mil começos e mil recomeços.
Basta uma jornada para se conquistar mais certezas. Como é bom conquistar certezas sobre si e sobre outras tantas coisas. Mesmo a de não se poder realizar algo nos orienta, nos assegura. 
Estas reflexões surgiram em meus pensamentos enquanto assistia ao filme “Renoir” de Gilles Bourdos, que se passa em 1915 na Côte d’Azur e é lá no crepúsculo da vida física que o pintor impressionista Auguste Renoir, vive a perda da sua mulher, as dores lancinantes no corpo e a imobilidade progressiva pelas artroses que tem nas mãos, nos braços e nas pernas.
Renoir pinta como ele é. Aliás, o que fazemos é sempre o nosso reflexo. Um dia, seu filho Jean Renoir, que se tornou um dos maiores cineastas da história do cinema francês, concernido pelo testemunho do supremo esforço que seu pai fazia para realizar a vida cotidiana, diz: “Meu pai... Pare de pintar... Você já retratou tudo que a vida contém” e Renoir o responde: “Meu corpo tenta terminar com as minhas forças físicas, mas mantenho o poder sobre ele ao continuar minhas telas apesar do meu esgotamento”.
Um dia na vida de Renoir pode ser observado como uma dimensão metafórica. O firme propósito de continuidade o insufla de uma energia que ninguém mais espera nele. A cada noite parece morrer, mas em cada amanhecer renasce através do inabalável e impressionante desejo de criar. Já não mais andava, mas ainda procurava para cada manhã, um novo cenário, uma nova cena do cotidiano. Renoir dispensava as cores escuras, pois dizia que cabia a ele conceber apenas o belo e deixar para a vida o resto. Falava que cada ser humano deveria ficar atento para colocar o belo em cada gesto e palavra. 
Suas cores, no impressionismo tem uma intenção filosófica: suas mulheres no banho, os piqueniques na margem do rio, a languidez da nudez, revela o modo que encontrou para vencer o que não poderia deixar invadir. A vida de Renoir se prolongava através da sua alma repleta de vibrações.
Vencer a vida se torna impossível, mas deixa-la agir sem alguma oposição é semelhante a pegar uma tela e deixar os pincéis na obra do acaso.
Confesso que nunca fui muito tocado pelas telas de Renoir, mas após saber que cada uma representa sua vitória sobre o destino e que suas cores falam da vontade de criar apenas o belo, me programo para retornar ao Museu d’Orsay e observar as obras deste impressionista com um novo olhar.
A vida compreendida traz a possibilidade de uma nova leitura sobre aquilo que parecia nada. Hoje cada tela, além da cena retratada, trará para mim a subjetiva mensagem de uma intensa luta. 
Passei o Natal e a entrada do Ano Novo na Escócia e na viagem que fiz pelo Highland onde foi filmado o último 007, fui ver o lugar onde se encontram um dos vestígios da civilização da Idade do Bronze. Ali toquei nas pedras que a quatro mil anos atrás utilizaram nas construções. Estavam intactas pela solidez de sua matéria. Elas atravessaram o tempo conservadas na forma que esta civilização esculpiu. Imortalizam a força das criações humanas.
Assim também em Renoir: a força da alma esculpe a existência, o faz vencer, ultrapassar os próprios limites. 
Determinações insuflam fôlegos.
Escrevo esta crônica de início de 2013 em Saint Germain, no café Bonaparte, a véspera de minha ida a Londres, e como no meu propósito colocado em uma das minhas crônicas de 2012, de levar apenas o essencial, comprei hoje uma valise menor do que havia programado. Vou colocar nela o essencial para viver esta viagem.
Organize sua valise e boa viagem nos dias deste 2013 que já deu início. Afaste o acaso com o fôlego que os propósitos definidos trazem.
Renoir colocou em sua bagagem de Vida: DETERMINAÇÃO.
Algumas dicas para um “Detox Psiquico” muito em voga aqui em Paris...
- Elimine de seu vocabulário as palavras que depreciam a si.
- Resgate o flanar para exercitar o olhar o belo... (Este caminhar está na última moda por aqui) Trinta minutos por dia sem poder enquanto caminha falar e olhar o feio e sem pensar no mau.
- Aprenda uma coisa nova por semana.
- Nesta semana vá ao seu armário e retire dele o que tenha mais de um ano sem uso e doe. Abra espaço para o novo.
Por aqui os brechós começaram por esta filosofia: o que não se usa mais tem que circular. Libere...
Eu já fiz este trabalho.
Lembre-se:
Determinações insuflam fôlegos.